Versão Revisada
"Como esquecerei tua presença gélida, fria como o hálito do inverno, levando-me a vida… ou será a própria vida, covarde, entregando-me às tuas mãos malditas?"
Assim murmurava o doente, preso à cama estreita de madeira escura, envolto em lençóis que pareciam carregar o peso de todos os anos que vivera. Respirava com dificuldade, cada suspiro um arrastar de correntes invisíveis dentro do peito.
A pequena janela do quarto deixava entrar um fiapo de luz cinzenta. Lá fora, o vento trazia o cheiro úmido de terra e folhas apodrecidas, o hálito da estação mais triste do ano. E, sobre ele, pairavam duas presenças que ninguém mais parecia ver: a Vida e a Morte.
— Ainda não é hora dele — disse a Vida, cuja voz lembrava o calor tímido do sol nas manhãs de primavera. Seus olhos eram claros como um rio, e sua presença trazia um sopro de esperança quase esquecido. — Ainda lhe restam anos, e a esperança é alimento da alma.
— Anos? — replicou a Morte, erguendo o queixo sob o capuz negro. Sua voz tinha o som de uma porta antiga rangendo ao vento. — Veja esse rosto… Pálido como véu de luto. Seus minutos são moedas gastas num mercado vazio. No máximo, horas.
O velho ouvia o diálogo, embora seus lábios tremessem sem força para intervir. Já não esperava a Esperança. Há muito deixara de chamá-la. Sabia que a Morte é a única visita que nunca se atrasa.
E lá estava ela, junto à cama: a caveira nua, polida, cintilando à luz fraca, envolta num manto que parecia beber a claridade. Na mão, a foice cuja lâmina refletia o último raio vindo da janela, tão afiado que parecia poder cortar até a própria noite.
Ainda assim, havia algo nela de estranho… um perfume frio, quase doce, e um porte feminino sob o tecido. Mas o velho sabia que aquilo era engano: por baixo, apenas ossos. A Vida, em contrapartida, resplandecia com uma luz dourada, calor que aquecia até a medula e um rosto que lembrava alguém que ele amara há muito tempo.
O quarto tornou-se um palco onde luz e sombra se encaravam. As paredes, manchadas pela umidade, pareciam se aproximar lentamente, como se o cômodo fosse um pulmão prestes a expirar o último suspiro.
Duas velas ardiam sobre a cômoda, lançando sombras trêmulas que dançavam como espectros presos. Lá fora, a tempestade rugia. A chuva golpeava as vidraças como dedos impacientes, e cada trovão fazia o velho estremecer.
Ele tossiu, tossiu até sentir gosto de ferro na boca.
— Estou… morrendo! — sussurrou, mas ninguém o ouviu.
A criada, que dormia na sala ao lado, acordou com o barulho e correu até ele. Seus olhos se arregalaram ao vê-lo tão branco, tão leve, como se já estivesse se desfazendo. Sem dizer palavra, correu para chamar o médico.
Quando este chegou, trazia no rosto o cansaço de quem já carregou mais mortes que curas. Encostou a mão fria na testa do doente, examinou o pulso, olhou nos olhos apagados. E suspirou.
— Não há mais nada que eu possa fazer.
A Morte sorriu.
A Vida abaixou os olhos.
O velho tentou falar, mas as palavras se arrastaram como folhas secas pelo chão:
— Eu… queria mais um dia… só um dia…
Mas ninguém respondeu.
Do canto do quarto, a Morte avançou. Sua presença apagava o calor, e as velas diminuíram suas chamas. No instante final, um lampejo: imagens da juventude, o rosto da mulher que amara, o cheiro da casa da infância, o som do mar que vira apenas uma vez na vida. Tudo se misturou numa última e dolorosa beleza.
Sobre a escrivaninha, papéis cobertos de poeira. Um deles era a última carta que escrevera, com letra trêmula:
"Estou à beira da morte, esvaindo-me dia após dia. Já não sou o jovem de outrora, mas um velho cansado, pele enrugada e corpo quebrado. Perdoe-me por não comparecer. Adeus… até outra vida, meu amigo. — João Pedro"
A Morte o tocou. E o silêncio caiu como um manto pesado. A tempestade cessou, como se até o céu respeitasse aquele momento.
Lá fora, um corvo grasnou uma única vez e voou para a escuridão.
E, no quarto vazio, apenas o som de passos se afastando… passos que pertenciam a alguém que não era mais deste mundo.

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