segunda-feira, 5 de março de 2018

O Piano

Por Tiago Amaral – Versão Revisada

 

O som veio do nada.

Um piano tocava no meio da mata, entre paisagens vivas e silenciosas. A melodia não parecia real — mas era. Invadia meus ouvidos, atravessava meu cérebro e tocava, com dedos invisíveis, a minha alma.

O modo como era tocado... aquilo só podia vir de um gênio. Ou de algo além da compreensão humana.

Fui atraído por aquela música como quem segue um chamado divino. Cada nota parecia ressoar dentro de mim, como se o universo estivesse tentando me dizer algo. Caminhei, guiado por aquele som, até que a mata se abriu num campo de relvas e montanhas altas. O céu estava limpo, o sol brilhava com intensidade, e as nuvens pareciam feitas de algodão. Tudo estava em perfeita harmonia — como se a natureza estivesse em estado de graça.

Os pássaros cantavam sem parar, compondo uma orquestra viva. Cada som era distribuído com precisão sobrenatural. Eu estava em êxtase. E segui a melodia.

A data era 2 de dezembro de 1686. Onze horas da manhã. Um dia ensolarado, perdido no tempo.

A música me arrastava como uma força invisível. Sempre fui apaixonado pelas artes, mas aquilo... aquilo não era humano. Era como se um anjo estivesse tocando. Ou algo mais antigo. Mais profundo.

O tempo passou. O sol subiu. Meio-dia chegou como um suspiro. E então, ao longe, vi a fonte: uma mansão isolada, cercada por um jardim exuberante. Flores vivas, cores intensas, mas a casa... a casa parecia morta. Abandonada. Silenciosa.

Mesmo assim, havia vida ao redor. Árvores, pássaros, troncos e galhos que pareciam pintados à mão por um artista divino. Nada ali parecia feito por mortais.

A melodia continuava. E eu, como um homem apaixonado, fui arrastado até a varanda da casa. Subi os degraus, e então ouvi uma voz atrás de mim.

— Estava esperando pelo senhor. Trabalhei para o senhor por muitos anos — disse uma senhora de aparência serena.

— Como assim? — perguntei, confuso.

— Numa outra vida — respondeu ela, com um sorriso triste.

Ela contou que ali vivera um grande artista com sua musa eterna. Um amor profundo, filhos, uma vida dedicada à criação e ao afeto. E que, segundo a lenda, ele voltaria àquele lugar para renovar tudo. Para reencontrar sua amada. Para recomeçar.

— E a senhora viveu essa vida? — perguntei.

— Sim. Assim como o senhor, sou um anjo. Fui predestinada a cuidar de você e do seu lar.

Tudo parecia loucura. Mas fazia sentido. Um sentido que não se explica com lógica, apenas com sentimento.

Olhei pela janela. Vi o velho piano. E naquele instante, tive um vislumbre da minha vida passada. A mulher que amei. O amor que me deu força para criar, para viver, para amar tudo.

A senhora me olhou com ternura.

— Ela é a sua força. Sem ela, não há arte. Não há vida.

E então compreendi: aquela música não era apenas uma melodia. Era um chamado. Uma lembrança. Um reencontro com o que fui — e com o que ainda sou.


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