Por Tiago Amaral - Versão Revisada
De súbito, uma lembrança
remota veio-me à mente, como o vulto fugidio de um rosto singelo e esquecido.
Então, antes que meu pensamento tomasse forma, ouvi — vindo de algum ponto
invisível — uma voz que sussurrou com terrível nitidez:
“Então, antes de pensar…
morra!”
O som, trazido pelo vento
noturno, penetrou minha janela e enraizou-se em meus ossos. Não sabia a quem
pertencia tal sentença, apenas que um pavor glacial me invadiu.
A cidade dormia sob um manto
de trevas recentes. As ruas, já vazias, se estendiam como veias escuras, e nos
becos — cada um deles — dois ou três pares de olhos faiscavam com luz própria.
Eram gatos. Sempre gatos.
Um deles, negro como o
pecado, cruzou por meu lado com passo solene. Do outro extremo, uma voz humana,
rouca pelo tempo, rompeu o silêncio:
“A cidade, à noite… é deles.”
O velho passou por mim, e
percebi-o apenas após o eco de sua frase se diluir no ar. E, de fato, percebi —
aquela noite parecia uma dádiva oferecida às criaturas felinas.
Numa esquina, dois gatos se
encontraram frente a frente, imóveis, como se trocassem confidências
invisíveis. Então, de detrás de um capuz, uma figura oculta murmurou:
“Os gatos… são os donos da
noite.”
Não vi seu rosto; apenas
senti o peso de suas palavras.
Aquela cidade era um
labirinto de mistérios e segredos, e eu nela chegara há poucas horas, na data
funesta de 1º de novembro de 1888.
Mas, com o avançar dos dias,
compreendi que mesmo o sol não lhes tomava o reino. Ao amanhecer, via-os
perambular entre feirantes e pescadores, reinando com a mesma altivez sobre o
cais. Alimentavam-se dos restos de peixe, e em seus bigodes luzia a satisfação
de soberanos saciados.
Assim, sob o esplendor de uma
tarde dourada, segui para encontrar minha amada — naquela cidade que, para os
homens, era apenas lar; mas para os gatos… era império.
Nenhum comentário:
Postar um comentário