domingo, 6 de agosto de 2017

A Cidade dos Gatos

Por Tiago Amaral - Versão Revisada

 Era uma noite de beleza silenciosa — o céu, coalhado de estrelas ascendente, parecia vigiar a terra com um brilho frio e longínquo.

De súbito, uma lembrança remota veio-me à mente, como o vulto fugidio de um rosto singelo e esquecido. Então, antes que meu pensamento tomasse forma, ouvi — vindo de algum ponto invisível — uma voz que sussurrou com terrível nitidez:

 

“Então, antes de pensar… morra!”

 

O som, trazido pelo vento noturno, penetrou minha janela e enraizou-se em meus ossos. Não sabia a quem pertencia tal sentença, apenas que um pavor glacial me invadiu.

 

A cidade dormia sob um manto de trevas recentes. As ruas, já vazias, se estendiam como veias escuras, e nos becos — cada um deles — dois ou três pares de olhos faiscavam com luz própria. Eram gatos. Sempre gatos.

Um deles, negro como o pecado, cruzou por meu lado com passo solene. Do outro extremo, uma voz humana, rouca pelo tempo, rompeu o silêncio:

 

“A cidade, à noite… é deles.”

 

O velho passou por mim, e percebi-o apenas após o eco de sua frase se diluir no ar. E, de fato, percebi — aquela noite parecia uma dádiva oferecida às criaturas felinas.

 

Numa esquina, dois gatos se encontraram frente a frente, imóveis, como se trocassem confidências invisíveis. Então, de detrás de um capuz, uma figura oculta murmurou:

 

“Os gatos… são os donos da noite.”

 

Não vi seu rosto; apenas senti o peso de suas palavras.

Aquela cidade era um labirinto de mistérios e segredos, e eu nela chegara há poucas horas, na data funesta de 1º de novembro de 1888.

 

Mas, com o avançar dos dias, compreendi que mesmo o sol não lhes tomava o reino. Ao amanhecer, via-os perambular entre feirantes e pescadores, reinando com a mesma altivez sobre o cais. Alimentavam-se dos restos de peixe, e em seus bigodes luzia a satisfação de soberanos saciados.

 

Assim, sob o esplendor de uma tarde dourada, segui para encontrar minha amada — naquela cidade que, para os homens, era apenas lar; mas para os gatos… era império.


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