Por Tiago Amaral - Versão Revisada
Na Itália de 1660, em uma cidadezinha aninhada aos pés de
um castelo de pedra cinzenta, vivia Duán, um jovem artista cujo coração pulsava
por Silvia, uma donzela de beleza celestial. Isolado em sua casa nobre, uma
construção antiga onde o eco de passos ressoava nas paredes, ele encontrava
refúgio apenas na visão de sua musa. Todas as manhãs, quando o sol tingia o céu
de dourado, ou ao entardecer, sob a luz suave do crepúsculo, Duán postava-se à
janela do andar superior. O vidro, embaçado por seu hálito ansioso, emoldurava
Silvia, que atravessava a rua de paralelepípedos com um cesto de frutas maduras
ou flores frescas. Sua graça, um balé de gestos delicados, encantava-o como uma
melodia silenciosa, reacendendo a chama de um amor impossível.
Duán, herdeiro de uma família abastada, rejeitara um
destino traçado desde a infância: um casamento arranjado com uma jovem que não
conhecia seu coração. A aliança, selada entre as famílias, era uma corrente que
ele se recusava a carregar. Silvia, por sua vez, também estava prometida a
outro, um compromisso imposto que a afastava de Duán. Determinado a viver por
seu amor, ele abandonou a opulência da mansão paterna e se mudou para uma casa
modesta, mais próxima do mercado onde Silvia passava. Ao girar a maçaneta fria
da nova porta, sentiu um alívio agridoce, como se a proximidade com sua amada
pudesse aliviar a solidão que o abraçava.
Na nova morada, a solidão tornou-se sua companheira
constante. Duán limpou os móveis empoeirados — armários de carvalho, cadeiras
gastas pelo tempo — e os cobriu com panos brancos, como se fossem relíquias de
uma vida que não lhe pertencia. Objetos materiais, heranças de um passado sem
significado, foram reunidos num baú de madeira. Numa noite silenciosa, ele
ateou fogo ao baú no quintal, as chamas dançando em seus olhos castanhos. O
crepitar da madeira ecoava sua decisão de se livrar de pesos vazios, e o brilho
do fogo refletia um semblante de alívio e determinação. Tudo o que restava era
o que carregava no peito: o amor pela arte, pela vida e, acima de tudo, por
Silvia.
Na casa, as paredes cinzentas ganharam vida com suas
criações. Duán pendurou quadros que transborda-vam de dor, paixão e saudade,
cada pincelada uma tentativa de capturar a essência de Silvia. No ateliê, um
espaço secreto acessado por um corredor escondido atrás de um armário, ele dava
forma a sua musa. Poemas fluíam como rios de tinta, esculturas de argila
moldavam a curva de seu rosto, e pinturas buscavam a luz de seus olhos. Cada
obra era um passo para se aproximar dela, um eco de sua alma que o destino lhe
negava.
Nina, sua gata preta e branca, era a única companhia que
suavizava o vazio. Duán a tratava como filha, seus olhos brilhantes um consolo
nas noites de solidão. Certa noite, exausto após horas desenhando Silvia à luz
tremulante de candelabros, ele adormeceu no sofá coberto por um pano branco, o
lápis de carvão ainda na mão, o papel com o rosto dela sobre o peito. Sonhou
com Silvia, aninhada em seus braços, um vislumbre de um amor que só existia em
sua mente. Acordou com Nina deitada sobre o desenho, os bigodes roçando o
papel, provavelmente faminta.
Levantou-se, pegou-a no colo e caminhou até a cozinha,
onde a luz das velas dançava nas paredes. Alimentou Nina, arrastou uma cadeira
e sentou-se, os dedos entre os cabelos desgrenhados, o rosto marcado por uma
angústia silenciosa. Com fome e sede, pegou pão, queijo e uma garrafa de vinho
tinto, cujo sabor amargo ecoava seu estado de espírito. Subiu as escadas,
segurando o corrimão de madeira polida, e sentou-se à escrivaninha no quarto.
Sob o brilho de uma vela, mergulhou a pena num tinteiro escuro, como um lago
noturno, e escreveu:
Na calada da noite, desperto de um sonho doce,
onde teus braços me envolvem, minha amada.
Se pudesse, nunca acordaria,
permanecendo preso à beatitude de teu toque celestial.
Assinou o poema com um floreio e, com o candelabro na
mão, seguiu pelo corredor secreto. O espaço, antes um porão empoeirado tomado
por teias de aranha, fora transformado em seu santuário. Duán varreu a poeira,
limpou as janelas que, ao dia, deixavam entrar raios de sol, dissipando a
melancolia da noite. Da janela do sótão, via o mercado, as árvores verdejantes,
as flores vibrantes — mas nada superava a visão de Silvia, cuja passagem era um
instante de divina inspiração.
Ali, no ateliê, Duán entregava-se à arte com uma devoção
quase sagrada. Embora pintasse retratos por encomenda para sustentar-se, sua
verdadeira paixão era retratar Silvia, buscando a perfeição que ainda lhe
escapava. Cada pincelada, cada verso, era uma ponte para sua alma, uma
tentativa de eternizar o amor que o consumia.
Numa manhã fria de 1660, a
cidade italiana despertou sob finos chuviscos, o ar carregado com o aroma úmido
da terra. Duán, segurando
uma xícara de café fumegante, postou-se à janela do sótão, o vidro embaçado
capturando o reflexo de seu rosto melancólico. Lá fora, a chuva caía em véus
delicados, tingindo os paralelepípedos de um brilho prateado. Foi então que ele
a viu — Silvia, sua musa, atravessando a rua com um cesto de flores, sua figura
envolta num manto que dançava ao vento. Sua graça, um presente divino, parecia
desafiar a monotonia do dia, iluminando a cidade com uma luz que só Duán percebia.
Encantado, ele deslizou a mão
direita pelo vidro, como se pudesse acariciar a textura suave de sua pele,
imaginando a perfeição de seu rosto sob os dedos. Seus olhos, brilhando com uma
ternura quase angelical, seguiram cada passo dela, até que Silvia desapareceu
na curva da rua. “Eu te amo, meu amor”, sussurrou, as palavras escapando como
uma prece. Para Duán,
Silvia não pertencia a este mundo — sua doçura, sua ternura, suas virtudes eram
celestiais, um farol em sua alma solitária. Mas ela estava prometida a outro, e
ele, preso ao seu amor impossível, só podia observá-la, cada vislumbre
aprofundando a paixão que o consumia.
Determinado a eternizar sua
musa, Duán voltou ao
ateliê, onde a luz de candelabros tremulava sobre esculturas inacabadas e telas
em branco. Resolveu terminar sua obra-prima: uma escultura de mármore que
capturasse Silvia em cada detalhe, e uma pintura que refletisse sua alma. Dia e
noite, ele trabalhou incansavelmente, regado a goles de vinho tinto, cujo sabor
amargo ecoava sua saudade. O sol dava lugar à lua, e a lua ao sol, numa dança
cíclica que marcava sua devoção. Cada cinzelada, cada pincelada, era um passo
para se aproximar dela, uma missão de criar algo tão perfeito quanto o amor que
sentia.
Após semanas de labor febril,
as obras estavam prontas. A escultura, em mármore branco, tinha a altura exata
de Silvia, cada curva de seu corpo esculpida com precisão: os olhos
expressivos, os cabelos esvoaçantes, as mãos delicadas até as pontas dos dedos.
Era uma réplica viva, tão perfeita que parecia respirar. A pintura, um retrato
em tons vívidos, capturava o brilho de seu olhar, as pinceladas geniais
construindo uma imagem que pulsava com a essência de Silvia. Duán, exausto mas extasiado,
sentiu que, pela primeira vez, havia tocado a alma de sua amada.
As obras foram levadas para a
sala, decorando o espaço outrora vazio com a presença de Silvia. Sua beleza
chamou a atenção da cidade, e Duán
foi convidado para uma exposição de arte, um evento raro que reunia os olhares
curiosos da nobreza local. Mas o destino reservava mais. As obras, exibidas com
orgulho, chegaram aos olhos de Silvia Dias. Encantada, ela soube que era a musa
que inspirava aquelas criações, a fonte do amor ardente que transborda-vam em
cada traço. Movida por curiosidade e emoção, Silvia procurou Duán.
No dia da exposição, sob o
brilho de lustres e o murmúrio da multidão, os olhos de Silvia encontraram os
de Duán. Ele, com o
coração disparado, viu nela não apenas a musa de suas obras, mas a mulher que
preenchia seus sonhos. Os olhos de Duán,
cheios de paixão e vulnerabilidade, cruzaram com os dela, serenos e profundos.
Naquele instante, o mundo silenciou — não havia mais solidão, apenas a promessa
de um amor eterno, selado num olhar que atravessava o tempo.