quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Duán e Silvia

Por Tiago Amaral - Versão Revisada

Na Itália de 1660, em uma cidadezinha aninhada aos pés de um castelo de pedra cinzenta, vivia Duán, um jovem artista cujo coração pulsava por Silvia, uma donzela de beleza celestial. Isolado em sua casa nobre, uma construção antiga onde o eco de passos ressoava nas paredes, ele encontrava refúgio apenas na visão de sua musa. Todas as manhãs, quando o sol tingia o céu de dourado, ou ao entardecer, sob a luz suave do crepúsculo, Duán postava-se à janela do andar superior. O vidro, embaçado por seu hálito ansioso, emoldurava Silvia, que atravessava a rua de paralelepípedos com um cesto de frutas maduras ou flores frescas. Sua graça, um balé de gestos delicados, encantava-o como uma melodia silenciosa, reacendendo a chama de um amor impossível.

Duán, herdeiro de uma família abastada, rejeitara um destino traçado desde a infância: um casamento arranjado com uma jovem que não conhecia seu coração. A aliança, selada entre as famílias, era uma corrente que ele se recusava a carregar. Silvia, por sua vez, também estava prometida a outro, um compromisso imposto que a afastava de Duán. Determinado a viver por seu amor, ele abandonou a opulência da mansão paterna e se mudou para uma casa modesta, mais próxima do mercado onde Silvia passava. Ao girar a maçaneta fria da nova porta, sentiu um alívio agridoce, como se a proximidade com sua amada pudesse aliviar a solidão que o abraçava.

Na nova morada, a solidão tornou-se sua companheira constante. Duán limpou os móveis empoeirados — armários de carvalho, cadeiras gastas pelo tempo — e os cobriu com panos brancos, como se fossem relíquias de uma vida que não lhe pertencia. Objetos materiais, heranças de um passado sem significado, foram reunidos num baú de madeira. Numa noite silenciosa, ele ateou fogo ao baú no quintal, as chamas dançando em seus olhos castanhos. O crepitar da madeira ecoava sua decisão de se livrar de pesos vazios, e o brilho do fogo refletia um semblante de alívio e determinação. Tudo o que restava era o que carregava no peito: o amor pela arte, pela vida e, acima de tudo, por Silvia.

Na casa, as paredes cinzentas ganharam vida com suas criações. Duán pendurou quadros que transborda-vam de dor, paixão e saudade, cada pincelada uma tentativa de capturar a essência de Silvia. No ateliê, um espaço secreto acessado por um corredor escondido atrás de um armário, ele dava forma a sua musa. Poemas fluíam como rios de tinta, esculturas de argila moldavam a curva de seu rosto, e pinturas buscavam a luz de seus olhos. Cada obra era um passo para se aproximar dela, um eco de sua alma que o destino lhe negava.

Nina, sua gata preta e branca, era a única companhia que suavizava o vazio. Duán a tratava como filha, seus olhos brilhantes um consolo nas noites de solidão. Certa noite, exausto após horas desenhando Silvia à luz tremulante de candelabros, ele adormeceu no sofá coberto por um pano branco, o lápis de carvão ainda na mão, o papel com o rosto dela sobre o peito. Sonhou com Silvia, aninhada em seus braços, um vislumbre de um amor que só existia em sua mente. Acordou com Nina deitada sobre o desenho, os bigodes roçando o papel, provavelmente faminta.

Levantou-se, pegou-a no colo e caminhou até a cozinha, onde a luz das velas dançava nas paredes. Alimentou Nina, arrastou uma cadeira e sentou-se, os dedos entre os cabelos desgrenhados, o rosto marcado por uma angústia silenciosa. Com fome e sede, pegou pão, queijo e uma garrafa de vinho tinto, cujo sabor amargo ecoava seu estado de espírito. Subiu as escadas, segurando o corrimão de madeira polida, e sentou-se à escrivaninha no quarto. Sob o brilho de uma vela, mergulhou a pena num tinteiro escuro, como um lago noturno, e escreveu:

Na calada da noite, desperto de um sonho doce,
onde teus braços me envolvem, minha amada.
Se pudesse, nunca acordaria,
permanecendo preso à beatitude de teu toque celestial.

Assinou o poema com um floreio e, com o candelabro na mão, seguiu pelo corredor secreto. O espaço, antes um porão empoeirado tomado por teias de aranha, fora transformado em seu santuário. Duán varreu a poeira, limpou as janelas que, ao dia, deixavam entrar raios de sol, dissipando a melancolia da noite. Da janela do sótão, via o mercado, as árvores verdejantes, as flores vibrantes — mas nada superava a visão de Silvia, cuja passagem era um instante de divina inspiração.

Ali, no ateliê, Duán entregava-se à arte com uma devoção quase sagrada. Embora pintasse retratos por encomenda para sustentar-se, sua verdadeira paixão era retratar Silvia, buscando a perfeição que ainda lhe escapava. Cada pincelada, cada verso, era uma ponte para sua alma, uma tentativa de eternizar o amor que o consumia.

 Numa manhã fria de 1660, a cidade italiana despertou sob finos chuviscos, o ar carregado com o aroma úmido da terra. Duán, segurando uma xícara de café fumegante, postou-se à janela do sótão, o vidro embaçado capturando o reflexo de seu rosto melancólico. Lá fora, a chuva caía em véus delicados, tingindo os paralelepípedos de um brilho prateado. Foi então que ele a viu — Silvia, sua musa, atravessando a rua com um cesto de flores, sua figura envolta num manto que dançava ao vento. Sua graça, um presente divino, parecia desafiar a monotonia do dia, iluminando a cidade com uma luz que só Duán percebia.

Encantado, ele deslizou a mão direita pelo vidro, como se pudesse acariciar a textura suave de sua pele, imaginando a perfeição de seu rosto sob os dedos. Seus olhos, brilhando com uma ternura quase angelical, seguiram cada passo dela, até que Silvia desapareceu na curva da rua. “Eu te amo, meu amor”, sussurrou, as palavras escapando como uma prece. Para Duán, Silvia não pertencia a este mundo — sua doçura, sua ternura, suas virtudes eram celestiais, um farol em sua alma solitária. Mas ela estava prometida a outro, e ele, preso ao seu amor impossível, só podia observá-la, cada vislumbre aprofundando a paixão que o consumia.

Determinado a eternizar sua musa, Duán voltou ao ateliê, onde a luz de candelabros tremulava sobre esculturas inacabadas e telas em branco. Resolveu terminar sua obra-prima: uma escultura de mármore que capturasse Silvia em cada detalhe, e uma pintura que refletisse sua alma. Dia e noite, ele trabalhou incansavelmente, regado a goles de vinho tinto, cujo sabor amargo ecoava sua saudade. O sol dava lugar à lua, e a lua ao sol, numa dança cíclica que marcava sua devoção. Cada cinzelada, cada pincelada, era um passo para se aproximar dela, uma missão de criar algo tão perfeito quanto o amor que sentia.

Após semanas de labor febril, as obras estavam prontas. A escultura, em mármore branco, tinha a altura exata de Silvia, cada curva de seu corpo esculpida com precisão: os olhos expressivos, os cabelos esvoaçantes, as mãos delicadas até as pontas dos dedos. Era uma réplica viva, tão perfeita que parecia respirar. A pintura, um retrato em tons vívidos, capturava o brilho de seu olhar, as pinceladas geniais construindo uma imagem que pulsava com a essência de Silvia. Duán, exausto mas extasiado, sentiu que, pela primeira vez, havia tocado a alma de sua amada.

As obras foram levadas para a sala, decorando o espaço outrora vazio com a presença de Silvia. Sua beleza chamou a atenção da cidade, e Duán foi convidado para uma exposição de arte, um evento raro que reunia os olhares curiosos da nobreza local. Mas o destino reservava mais. As obras, exibidas com orgulho, chegaram aos olhos de Silvia Dias. Encantada, ela soube que era a musa que inspirava aquelas criações, a fonte do amor ardente que transborda-vam em cada traço. Movida por curiosidade e emoção, Silvia procurou Duán.

No dia da exposição, sob o brilho de lustres e o murmúrio da multidão, os olhos de Silvia encontraram os de Duán. Ele, com o coração disparado, viu nela não apenas a musa de suas obras, mas a mulher que preenchia seus sonhos. Os olhos de Duán, cheios de paixão e vulnerabilidade, cruzaram com os dela, serenos e profundos. Naquele instante, o mundo silenciou — não havia mais solidão, apenas a promessa de um amor eterno, selado num olhar que atravessava o tempo.


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