domingo, 31 de julho de 2022

A Visita

Por Tiago Amaral - Versão Editada

O deserto do Arizona cozinhava sob o sol impiedoso, o ar tremeluzindo com o calor que subia do chão rachado. Na pequena fazenda de Sarah, perdida no meio do nada, o silêncio era quebrado apenas pelo zumbido de moscas e pelo chiado distante da televisão. Era um dia como qualquer outro, até que não era mais.

Um carro, uma caminhonete velha com a pintura descascada, saiu da estrada empoeirada, suas rodas levantando nuvens de areia enquanto adentrava o terreno da fazenda. Sarah, em licença-maternidade, embalava seu bebê recém-nascido no quarto, os olhos pesados de exaustão. Seus outros filhos, Caroline, de nove anos, e Pattinson, de sete, brincavam no chão com blocos de montar. A paz doméstica foi cortada por uma voz, doce, mas estranhamente fria, vindo do lado de fora.

— Olá! Tem alguém em casa? — chamou uma mulher, a voz carregando um tom que não combinava com o calor do deserto.

Sarah franziu a testa, o instinto de mãe disparando como um alarme. Ela colocou o bebê no berço e se levantou, o coração acelerando. “Não recebemos visitas por aqui há anos”, pensou, enquanto atravessava a sala, o assoalho rangendo sob seus pés. Na televisão, um noticiário falava de luzes estranhas nos céus ao redor do mundo, mas Sarah mal registrou. Seu foco estava na porta da frente — e na mulher que a chamava.

— Tem alguém aí? Preciso de ajuda! — insistiu a voz, agora mais alta, quase suplicante.

Sarah hesitou, a mão instintivamente buscando a espingarda calibre 12 guardada no armário da sala. Era uma relíquia do avô de Tom, seu marido, sempre carregada para o caso de coiotes ou algo pior. Ela verificou o tambor, os cartuchos alinhados como sentinelas, e desceu a escada lentamente, o coração batendo na garganta. Pela janela ao lado da porta, viu a mulher: alta, com um vestido preto que parecia engolir a luz do sol, um chapéu da mesma cor cobrindo parcialmente o rosto. Ao lado dela, um garoto de uns quatro anos, com uma camiseta listrada e uma bermuda azul-escura, quase preta, segurava uma maleta acinzentada. A mulher parecia grávida, o ventre inchado sob o vestido, mas havia algo errado — uma palidez que não pertencia ao calor do deserto, olhos claros demais, quase luminescentes.

— Quem é você e o que faz por essas bandas? — perguntou Sarah, a voz firme, mas carregada de desconfiança, a espingarda escondida atrás da porta.

— Meu nome é Laura — respondeu a mulher, a voz suave, mas com um eco que fez os pelos de Sarah se arrepiarem. — Meu carro quebrou ali na estrada. Só preciso de ajuda e juro que vou embora.

Sarah apertou os olhos. “Ninguém passa por aqui. Não sem motivo.” — Desculpe a hostilidade, mas não recebemos visitas. Faz anos. Meu marido não está, e estou sozinha com meus filhos.

— Qual é o nome dele? — perguntou Laura, inclinando a cabeça, o chapéu projetando uma sombra que escondia seus olhos.

— Tom — respondeu Sarah, a palavra saindo mais seca do que pretendia.

O sol queimava o quintal, mas o ar parecia mais frio agora, como se a presença de Laura trouxesse uma sombra invisível. Na televisão, o noticiário continuava, falando de fenômenos inexplicáveis, luzes dançando nos céus. Sarah ignorou, focada na estranha à sua porta.

— Pode me dar um copo d’água? — pediu Laura, o tom quase infantil, mas com algo por trás, algo que não era humano.

— Espere aqui — disse Sarah, hesitante, recuando para a cozinha. — Tenho um ou dois galões de gasolina no celeiro, se for isso que precisa.

— Obrigada, Sarah — respondeu Laura, e o som de seu nome na boca da mulher fez um calafrio descer por sua espinha. Como ela sabia?

— Pode me acompanhar até o carro? — continuou Laura, agora mais perto da porta, o garoto ao seu lado encarando Sarah com olhos que pareciam vazios. — Quero falar longe das crianças. Vocês precisam vir comigo.

Sarah congelou, a mão apertando o cabo da espingarda. — Não vou a lugar nenhum com você — retrucou, a voz cortante. Ela recuou, batendo a porta e girando a tranca. — Crianças, pra dentro! Agora! — gritou para Caroline e Pattinson, que haviam subido para o quarto.

— Mãe, o que tá acontecendo? — perguntou Pattinson, os olhos arregalados, enquanto Caroline segurava o bebê, que começava a chorar.

— Nada, querido. Fiquem aqui — respondeu Sarah, tentando soar calma, mas sua voz tremia. Ela correu para o quarto do casal, trancando a porta e procurando mais cartuchos. Pegou o telefone, discando para Tom com dedos trêmulos. — Alô, Tom! Querido, você precisa voltar agora. Tem uma mulher estranha aqui, com um menino. Ela disse que precisamos ir com ela. Algo está errado.

— Estou indo, Sarah. Fica com as crianças — respondeu Tom, a voz tensa, o motor de sua caminhonete rugindo ao fundo.

Enquanto Sarah falava, um clarão ofuscante cortou o céu lá fora, visível pela fresta da cortina. Barulhos estranhos ecoaram — um zumbido grave, como um enxame de insetos mecânicos, misturado a estalos que pareciam vir de dentro das paredes. Sarah espiou pela janela, o coração disparado. Laura e o garoto avançavam lentamente pelo quintal, os olhos dela brilhando com uma luz pálida, quase prateada, que não pertencia a este mundo. O garoto, imóvel, parecia menos uma criança e mais uma marionete, seus movimentos rígidos, como se puxados por fios invisíveis.

— Não se aproximem! — gritou Sarah, levantando a espingarda. — Vou fazer o que for preciso pra proteger meus filhos!

— Eu entendo, Sarah — respondeu Laura, a voz ecoando como se viesse de muito longe. — Não queremos machucar você. Nem as crianças.

Sarah disparou um tiro de advertência, o estampido ecoando pelo deserto. Quando olhou novamente, Laura e o garoto haviam sumido, como se o clarão os tivesse engolido. — Cadê eles, mamãe? — perguntou Pattinson, a voz trêmula, agarrado à perna dela.

— Não sei, querido — murmurou Sarah, o coração na garganta, a espingarda ainda apontada para a porta. Mas a voz de Laura ecoou novamente, agora dentro da casa, como se viesse de todos os lados.

— Sarah, viemos para ajudar. Vocês foram escolhidos.

 

Sarah segurava a espingarda com força, os nós dos dedos brancos, o coração batendo como um tambor no peito. A voz de Laura, a mulher misteriosa, ecoava dentro da casa, suave e fria, como um vento que não pertencia ao deserto do Arizona. “Sarah, viemos para ajudar. Não podemos partir sem vocês. Vocês foram escolhidos, assim como outros pelo mundo.”

— Como assim, escolhidos? — gritou Sarah, a voz rasgada pelo pavor. — Não entendo nada! E não vou a lugar nenhum sem meu marido!

— Tom também foi escolhido — respondeu Laura, os olhos claros, quase luminescentes, fixos em Sarah através da fresta da porta. — Ele é parte da família.

Sarah tremia, a espingarda apontada para o chão, incapaz de mirar diretamente aqueles olhos que pareciam enxergar além dela, além do mundo. — O que está acontecendo? — perguntou, a voz falhando, um sussurro de desespero.

Laura inclinou a cabeça, o chapéu negro projetando uma sombra que engolia a luz do corredor. — A humanidade está à beira do fim, Sarah. Um corpo celeste, maior que qualquer montanha, está vindo. Nada pode detê-lo. Vocês foram escolhidos para sobreviver.

Enquanto isso, Tom acelerava pela estrada poeirenta, o motor da caminhonete rugindo sob o céu que escurecia de forma anormal. Ele notava as pessoas ao longo do caminho — fazendeiros, motoristas, crianças —, todas paradas, olhando para cima, hipnotizadas por luzes que dançavam no céu como estrelas errantes. “O que está acontecendo?”, pensou, esticando o pescoço pela janela. As luzes pulsavam, não como aviões ou meteoros, mas como algo vivo, algo que observava.

Na fazenda, Sarah recuou para o quarto, onde Caroline e Pattinson se encolhiam, o bebê chorando baixinho no berço. Ela destrancou a porta, a espingarda ainda em mãos, e encarou Laura, que parecia não ter se movido, mas estava mais perto, como se o espaço entre elas tivesse encolhido. — Você não quer nos machucar, não é? — perguntou Sarah, buscando nos olhos prateados da mulher algo humano, algo que fizesse sentido.

— Não — respondeu Laura, a voz calma, mas com um peso que fez o ar vibrar. — Viemos para salvar vocês.

Sarah engoliu em seco, dividida entre o instinto de proteger sua família e a sensação de que resistir era inútil. — Explica, então. O que está acontecendo? — exigiu, a arma tremendo em suas mãos.

Laura ergueu uma mão, e a maleta acinzentada ao lado do garoto se abriu sozinha, revelando um brilho que não era luz, mas algo mais — uma pulsação que parecia dobrar o ar ao redor. — O fim está próximo. Um cometa, mais antigo que a Terra, colidirá em breve. A maioria perecerá, mas vocês foram escolhidos para continuar. Para um novo começo, em outro lugar.

Antes que Sarah pudesse responder, o ronco da caminhonete de Tom cortou o silêncio do deserto. Ele estacionou com um guincho de pneus, saltando do carro e correndo para a casa, o rosto pálido de preocupação. Ao entrar, seus olhos encontraram Laura e o garoto, parado como uma estátua, a maleta brilhando a seus pés. — Sarah! — gritou, correndo para ela. — O que está acontecendo?

Sarah, com os olhos marejados, segurou o braço dele. — Tom, temos que ir com ela. Não temos escolha. Ela diz que o mundo vai acabar.

— Para onde? — perguntou Tom, a voz rouca, olhando de Sarah para Laura.

Laura apontou para o céu, onde as luzes agora formavam um padrão, como um mapa estelar que não pertencia à Terra. — Está nos noticiários, Tom. Pessoas desaparecendo. Luzes nos céus. Visitantes em casas ao redor do mundo. Tudo está conectado. O tempo acabou.

Tom olhou para as luzes, o coração apertado. Ele vira os relatos na estrada, ouvira os murmúrios de abduções, de fenômenos inexplicáveis. Agora, encarando Laura, ele sabia: não havia como lutar contra aquilo. — Então, o que vimos no céu... tem a ver com isso? — perguntou, a voz carregada de uma tristeza resignada.

— Sim — respondeu Laura, e pela primeira vez sua voz pareceu quase humana, como se carregasse um peso próprio. — O cometa está próximo. Nada pode detê-lo.

Sarah segurou a mão de Tom, as crianças abraçadas a eles, o bebê agora silencioso, como se sentisse a gravidade do momento. — Vamos ficar bem, não é? — perguntou ela, olhando para Laura, buscando uma promessa.

— Vocês estarão juntos — disse Laura, e o garoto ao seu lado inclinou a cabeça, como se concordasse.

Um clarão explodiu, ofuscante, engolindo a fazenda, a casa, o deserto. Sarah, Tom, Caroline, Pattinson e o bebê desapareceram, levados para um lugar além das estrelas. Na Terra, os noticiários continuariam, falando de luzes, desaparecimentos, e um cometa que ninguém podia parar. Mas os escolhidos, como Sarah e sua família, estavam em outro lugar, onde o futuro, talvez, fosse uma promessa — ou um mistério ainda maior.



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