Por Tiago Amaral - Versão Editada
O deserto do Arizona cozinhava sob o sol impiedoso, o ar
tremeluzindo com o calor que subia do chão rachado. Na pequena fazenda de
Sarah, perdida no meio do nada, o silêncio era quebrado apenas pelo zumbido de moscas
e pelo chiado distante da televisão. Era um dia como qualquer outro, até que
não era mais.
Um carro, uma caminhonete velha com a pintura descascada,
saiu da estrada empoeirada, suas rodas levantando nuvens de areia enquanto
adentrava o terreno da fazenda. Sarah, em licença-maternidade, embalava seu
bebê recém-nascido no quarto, os olhos pesados de exaustão. Seus outros filhos,
Caroline, de nove anos, e Pattinson, de sete, brincavam no chão com blocos de
montar. A paz doméstica foi cortada por uma voz, doce, mas estranhamente fria,
vindo do lado de fora.
— Olá! Tem alguém em casa? — chamou uma mulher, a voz
carregando um tom que não combinava com o calor do deserto.
Sarah franziu a testa, o instinto de mãe disparando como
um alarme. Ela colocou o bebê no berço e se levantou, o coração acelerando.
“Não recebemos visitas por aqui há anos”, pensou, enquanto atravessava a sala,
o assoalho rangendo sob seus pés. Na televisão, um noticiário falava de luzes
estranhas nos céus ao redor do mundo, mas Sarah mal registrou. Seu foco estava
na porta da frente — e na mulher que a chamava.
— Tem alguém aí? Preciso de ajuda! — insistiu a voz,
agora mais alta, quase suplicante.
Sarah hesitou, a mão instintivamente buscando a
espingarda calibre 12 guardada no armário da sala. Era uma relíquia do avô de
Tom, seu marido, sempre carregada para o caso de coiotes ou algo pior. Ela
verificou o tambor, os cartuchos alinhados como sentinelas, e desceu a escada
lentamente, o coração batendo na garganta. Pela janela ao lado da porta, viu a
mulher: alta, com um vestido preto que parecia engolir a luz do sol, um chapéu
da mesma cor cobrindo parcialmente o rosto. Ao lado dela, um garoto de uns quatro
anos, com uma camiseta listrada e uma bermuda azul-escura, quase preta,
segurava uma maleta acinzentada. A mulher parecia grávida, o ventre inchado sob
o vestido, mas havia algo errado — uma palidez que não pertencia ao calor do
deserto, olhos claros demais, quase luminescentes.
— Quem é você e o que faz por essas bandas? — perguntou
Sarah, a voz firme, mas carregada de desconfiança, a espingarda escondida atrás
da porta.
— Meu nome é Laura — respondeu a mulher, a voz suave, mas
com um eco que fez os pelos de Sarah se arrepiarem. — Meu carro quebrou ali na
estrada. Só preciso de ajuda e juro que vou embora.
Sarah apertou os olhos. “Ninguém passa por aqui. Não sem
motivo.” — Desculpe a hostilidade, mas não recebemos visitas. Faz anos. Meu
marido não está, e estou sozinha com meus filhos.
— Qual é o nome dele? — perguntou Laura, inclinando a
cabeça, o chapéu projetando uma sombra que escondia seus olhos.
— Tom — respondeu Sarah, a palavra saindo mais seca do
que pretendia.
O sol queimava o quintal, mas o ar parecia mais frio
agora, como se a presença de Laura trouxesse uma sombra invisível. Na
televisão, o noticiário continuava, falando de fenômenos inexplicáveis, luzes
dançando nos céus. Sarah ignorou, focada na estranha à sua porta.
— Pode me dar um copo d’água? — pediu Laura, o tom quase
infantil, mas com algo por trás, algo que não era humano.
— Espere aqui — disse Sarah, hesitante, recuando para a
cozinha. — Tenho um ou dois galões de gasolina no celeiro, se for isso que
precisa.
— Obrigada, Sarah — respondeu Laura, e o som de seu nome
na boca da mulher fez um calafrio descer por sua espinha. Como ela sabia?
— Pode me acompanhar até o carro? — continuou Laura,
agora mais perto da porta, o garoto ao seu lado encarando Sarah com olhos que
pareciam vazios. — Quero falar longe das crianças. Vocês precisam vir comigo.
Sarah congelou, a mão apertando o cabo da espingarda. —
Não vou a lugar nenhum com você — retrucou, a voz cortante. Ela recuou, batendo
a porta e girando a tranca. — Crianças, pra dentro! Agora! — gritou para
Caroline e Pattinson, que haviam subido para o quarto.
— Mãe, o que tá acontecendo? — perguntou Pattinson, os
olhos arregalados, enquanto Caroline segurava o bebê, que começava a chorar.
— Nada, querido. Fiquem aqui — respondeu Sarah, tentando
soar calma, mas sua voz tremia. Ela correu para o quarto do casal, trancando a
porta e procurando mais cartuchos. Pegou o telefone, discando para Tom com
dedos trêmulos. — Alô, Tom! Querido, você precisa voltar agora. Tem uma mulher
estranha aqui, com um menino. Ela disse que precisamos ir com ela. Algo está
errado.
— Estou indo, Sarah. Fica com as crianças — respondeu
Tom, a voz tensa, o motor de sua caminhonete rugindo ao fundo.
Enquanto Sarah falava, um clarão ofuscante cortou o céu
lá fora, visível pela fresta da cortina. Barulhos estranhos ecoaram — um
zumbido grave, como um enxame de insetos mecânicos, misturado a estalos que
pareciam vir de dentro das paredes. Sarah espiou pela janela, o coração
disparado. Laura e o garoto avançavam lentamente pelo quintal, os olhos dela
brilhando com uma luz pálida, quase prateada, que não pertencia a este mundo. O
garoto, imóvel, parecia menos uma criança e mais uma marionete, seus movimentos
rígidos, como se puxados por fios invisíveis.
— Não se aproximem! — gritou Sarah, levantando a
espingarda. — Vou fazer o que for preciso pra proteger meus filhos!
— Eu entendo, Sarah — respondeu Laura, a voz ecoando como
se viesse de muito longe. — Não queremos machucar você. Nem as crianças.
Sarah disparou um tiro de advertência, o estampido
ecoando pelo deserto. Quando olhou novamente, Laura e o garoto haviam sumido,
como se o clarão os tivesse engolido. — Cadê eles, mamãe? — perguntou
Pattinson, a voz trêmula, agarrado à perna dela.
— Não sei, querido — murmurou Sarah, o coração na
garganta, a espingarda ainda apontada para a porta. Mas a voz de Laura ecoou
novamente, agora dentro da casa, como se viesse de todos os lados.
— Sarah, viemos para ajudar. Vocês foram escolhidos.
Sarah segurava a espingarda com força, os nós dos dedos
brancos, o coração batendo como um tambor no peito. A voz de Laura, a mulher
misteriosa, ecoava dentro da casa, suave e fria, como um vento que não
pertencia ao deserto do Arizona. “Sarah, viemos para ajudar. Não podemos partir
sem vocês. Vocês foram escolhidos, assim como outros pelo mundo.”
— Como assim, escolhidos? — gritou Sarah, a voz rasgada
pelo pavor. — Não entendo nada! E não vou a lugar nenhum sem meu marido!
— Tom também foi escolhido — respondeu Laura, os olhos
claros, quase luminescentes, fixos em Sarah através da fresta da porta. — Ele é
parte da família.
Sarah tremia, a espingarda apontada para o chão, incapaz
de mirar diretamente aqueles olhos que pareciam enxergar além dela, além do
mundo. — O que está acontecendo? — perguntou, a voz falhando, um sussurro de
desespero.
Laura inclinou a cabeça, o chapéu negro projetando uma
sombra que engolia a luz do corredor. — A humanidade está à beira do fim,
Sarah. Um corpo celeste, maior que qualquer montanha, está vindo. Nada pode
detê-lo. Vocês foram escolhidos para sobreviver.
Enquanto isso, Tom acelerava pela estrada poeirenta, o
motor da caminhonete rugindo sob o céu que escurecia de forma anormal. Ele
notava as pessoas ao longo do caminho — fazendeiros, motoristas, crianças —,
todas paradas, olhando para cima, hipnotizadas por luzes que dançavam no céu
como estrelas errantes. “O que está acontecendo?”, pensou, esticando o pescoço
pela janela. As luzes pulsavam, não como aviões ou meteoros, mas como algo
vivo, algo que observava.
Na fazenda, Sarah recuou para o quarto, onde Caroline e
Pattinson se encolhiam, o bebê chorando baixinho no berço. Ela destrancou a
porta, a espingarda ainda em mãos, e encarou Laura, que parecia não ter se
movido, mas estava mais perto, como se o espaço entre elas tivesse encolhido. —
Você não quer nos machucar, não é? — perguntou Sarah, buscando nos olhos
prateados da mulher algo humano, algo que fizesse sentido.
— Não — respondeu Laura, a voz calma, mas com um peso que
fez o ar vibrar. — Viemos para salvar vocês.
Sarah engoliu em seco, dividida entre o instinto de
proteger sua família e a sensação de que resistir era inútil. — Explica, então.
O que está acontecendo? — exigiu, a arma tremendo em suas mãos.
Laura ergueu uma mão, e a maleta acinzentada ao lado do
garoto se abriu sozinha, revelando um brilho que não era luz, mas algo mais —
uma pulsação que parecia dobrar o ar ao redor. — O fim está próximo. Um cometa,
mais antigo que a Terra, colidirá em breve. A maioria perecerá, mas vocês foram
escolhidos para continuar. Para um novo começo, em outro lugar.
Antes que Sarah pudesse responder, o ronco da caminhonete
de Tom cortou o silêncio do deserto. Ele estacionou com um guincho de pneus,
saltando do carro e correndo para a casa, o rosto pálido de preocupação. Ao
entrar, seus olhos encontraram Laura e o garoto, parado como uma estátua, a
maleta brilhando a seus pés. — Sarah! — gritou, correndo para ela. — O que está
acontecendo?
Sarah, com os olhos marejados, segurou o braço dele. —
Tom, temos que ir com ela. Não temos escolha. Ela diz que o mundo vai acabar.
— Para onde? — perguntou Tom, a voz rouca, olhando de
Sarah para Laura.
Laura apontou para o céu, onde as luzes agora formavam um
padrão, como um mapa estelar que não pertencia à Terra. — Está nos noticiários,
Tom. Pessoas desaparecendo. Luzes nos céus. Visitantes em casas ao redor do
mundo. Tudo está conectado. O tempo acabou.
Tom olhou para as luzes, o coração apertado. Ele vira os
relatos na estrada, ouvira os murmúrios de abduções, de fenômenos
inexplicáveis. Agora, encarando Laura, ele sabia: não havia como lutar contra
aquilo. — Então, o que vimos no céu... tem a ver com isso? — perguntou, a voz
carregada de uma tristeza resignada.
— Sim — respondeu Laura, e pela primeira vez sua voz
pareceu quase humana, como se carregasse um peso próprio. — O cometa está
próximo. Nada pode detê-lo.
Sarah segurou a mão de Tom, as crianças abraçadas a eles,
o bebê agora silencioso, como se sentisse a gravidade do momento. — Vamos ficar
bem, não é? — perguntou ela, olhando para Laura, buscando uma promessa.
— Vocês estarão juntos — disse Laura, e o garoto ao seu
lado inclinou a cabeça, como se concordasse.
Um clarão explodiu, ofuscante, engolindo a fazenda, a
casa, o deserto. Sarah, Tom, Caroline, Pattinson e o bebê desapareceram,
levados para um lugar além das estrelas. Na Terra, os noticiários continuariam,
falando de luzes, desaparecimentos, e um cometa que ninguém podia parar. Mas os
escolhidos, como Sarah e sua família, estavam em outro lugar, onde o futuro,
talvez, fosse uma promessa — ou um mistério ainda maior.
