A mulher caminhava sozinha pela estrada, os pés descalços sobre o asfalto frio, o olhar perdido em algum lugar entre o passado e o nada. Não sabia quem era, nem para onde ia. Apenas repetia em sua mente, como um eco insuportável:
“O que aconteceu comigo...?”
As nuvens acima se acumulavam
pesadas, anunciando uma tempestade iminente. Um carro se aproximou,
desacelerando quando o motorista notou a figura feminina no acostamento.
— Olha... uma mulher ali. —
disse o homem, surpreso.
— Ela parece desorientada... — comentou a esposa. — Temos que ajudá-la.
O casal parou e abriu a porta
do carro. A mulher subiu sem dizer uma palavra coerente, apenas murmurava,
entre suspiros e olhos marejados:
— Eu os perdi... Eu os perdi...
O casal trocou olhares
incertos.
— Ela deve estar em choque...
— murmurou o homem.
— Vamos levá-la a um hospital. Eles saberão o que fazer.
A chuva começou a cair
enquanto seguiam pela estrada. No hospital, entregaram a mulher à recepção,
relatando o que viram.
— Encontramos essa moça
vagando na estrada, parecia perdida... assustada.
— Faremos uma avaliação — respondeu a atendente.
Jesse — como descobriram mais
tarde que se chamava — foi examinada. Nenhum sinal de lesão física. Nenhuma
pista concreta. Mas algo nela... algo vibrava como um sussurro vindo do abismo.
Foi encaminhada para um
hospital psiquiátrico. Os médicos não faziam ideia do que estavam acolhendo.
Jesse havia escapado de uma
base militar ultra-secreta, onde passou boa parte da vida sendo submetida a
experimentos. “Projeto Jesse”, chamavam. Era confidencial. Perigoso. Inumano.
Dias depois, uma psiquiatra
experiente, doutora Anna, foi designada para assumir o caso.
— Obrigada pela carona, Tom —
disse ela ao amigo que a deixou na entrada do hospital.
— De nada. Boa sorte com ela.
Na recepção, Anna perguntou:
— Vim acompanhar o caso
Jesse. Em que quarto ela está?
— Quarto 415. Boa sorte, doutora.
Anna subiu. Quando abriu a
porta do quarto, encontrou a garota sentada à janela, observando os galhos
balançarem ao vento.
— Olá, Jesse. Esse é o seu
nome, certo?
— Sim — respondeu a garota,
sem tirar os olhos do céu cinzento. Em seguida, virou-se para encarar Anna com
uma intensidade quase sobrenatural.
— Eu preciso sair daqui. Algo
muito grave vai acontecer.
A voz dela era calma, mas
carregava o peso de uma premonição. Do lado de fora, os pássaros cantavam,
desavisados. Um vento morno cortava as árvores. Tudo parecia prestes a
explodir.
— Me conte mais sobre isso,
Jesse — pediu Anna, sentando-se com um bloco de notas no colo. — Disseram que
você perdeu algo... que há perigo.
— Eu já disse tudo. Não posso
dizer mais. Não vão entender — respondeu Jesse, desviando o olhar.
Anna anotava, observava,
calculava. Mas havia algo em Jesse que ia além da razão. Ela parecia sentir o
tempo mudar por dentro. Seus olhos vibravam. Ela não estava só desorientada — ela
era um epicentro prestes a colapsar.
Subitamente, Jesse se
levantou e segurou as mãos da doutora.
— Por favor... me tire daqui.
Me leve para longe. Se eu ficar... algo horrível vai acontecer com todos.
Mas Anna hesitou. Havia
protocolos. Regras. E, acima de tudo, medo. Medo do que Jesse era — ou do que
poderia se tornar.
Mas como uma garota presa ali
não conseguia simplesmente fugir? A resposta era simples: seus poderes vinham e
iam como marés violentas. Incontroláveis. Misteriosos.
Antes de chegar à estrada,
Jesse havia se escondido na mata. Lá, desesperada por ajuda, encontrou uma
cabana isolada. Um homem rude a recebeu com um sorriso lascivo.
— Entre. Você parece
cansada...
Jesse, trêmula, entrou.
— Me... me ajude... —
sussurrou.
Mas ele a agarrou com
brutalidade.
— Vamos, não faça isso
difícil...
— Me solta! — gritou Jesse,
com os olhos se enchendo de lágrimas e fúria.
O homem riu, puxando-a para
dentro. Mal sabia o que despertava.
Naquele instante, algo
explodiu dentro dela. Seus poderes despertaram em uma fúria silenciosa,
invisível, mas letal.
A casa tremeu. Paredes se
desfizeram como papel. Um grito abafado. Sangue. Estilhaços.
Quando a família do homem
chegou, encontrou apenas ruínas carbonizadas, sangue espalhado e a sombra do
que antes fora um lar. Jesse havia desaparecido, levada por um instinto que nem
ela compreendia.
Agora, no hospital
psiquiátrico, essa mesma força borbulhava dentro dela, pronta para romper. E o
mundo, sem saber, estava prestes a conhecer o verdadeiro significado da palavra
poder.
Após o incidente na casa,
Jesse cambaleou para fora, os olhos marejados, o corpo tremendo. Vomitou ali
mesmo, entre as folhas úmidas e a podridão do mato. Ainda desorientada, fugiu
pela floresta sem saber para onde ia. Nada parecia feri-la fisicamente — mas
por dentro, ela era só caos. Um fantasma assombrado por si mesma.
Eventualmente, seus passos a
levaram até a estrada.
— Eu só quero sair daqui...
não posso ficar... — murmurou Jesse, o olhar perdido em algum ponto do tempo
que ainda não havia chegado. — Eu sinto... eu vejo... algo terrível vai
acontecer. E será minha culpa.
— Como assim, algo terrível?
— perguntou a doutora Anna, confusa.
O tempo passava e o presságio
tornava-se cada vez mais real. Um desastre se aproximava, e Jesse, aquela jovem
de aparência frágil, era o epicentro silencioso da tragédia iminente.
Ela era um experimento
militar ultra-secreto. Um projeto de destruição ambulante.
O chamado Projeto Jesse
fazia parte de uma iniciativa clandestina para criar armas humanas com
habilidades paranormais. Era algo monstruoso, enterrado nos porões do mundo
civilizado. Se a humanidade havia criado bombas nucleares, o próximo passo
seria inevitável: seres humanos como armas conscientes.
Diversas nações cooperavam
secretamente nesse tipo de desenvolvimento. Jesse era apenas uma entre muitos.
Desde o nascimento, ela e outros como ela foram monitorados, treinados,
estimulados — transformados. Tudo sob vigilância de cientistas que, por ironia
amarga, incluíam os próprios pais de Jesse.
Com o tempo, seus poderes
cresceram, e com eles veio a percepção ampliada. Jesse começou a ver o
que ninguém via. Um dia, por falha no sistema, fugiu da base. Ainda que não
fosse prisioneira no papel, vivia em cativeiro. Quando finalmente viu a luz do
sol — verdadeira luz, não artificial — sentiu uma alegria crua, breve... antes
de lembrar que estava sendo caçada.
Correu. E foi na estrada que
um carro a atropelou.
O veículo explodiu.
Ela saiu ilesa.
Mais assustada do que nunca,
começou a vagar, como um espectro, pela estrada.
Na Base Militar
— Ela é um risco inaceitável.
Não controla seus poderes.
— Concordo. Precisamos encontrá-la antes que algo grave aconteça.
— Se não conseguirmos rastreá-la... só nos resta esperar um erro. E torcer para
não ser catastrófico.
No hospital, Jesse estava
deitada, observando o teto. Ela sabia que, se quisesse, poderia fugir. Mas seus
dons eram instáveis, como explosões solares — vinham e iam. Uma arma que ainda
não aprendera a atirar.
A noite caiu, estrelada,
bela. Um contraste cruel.
Durante o sono, ela foi
tragada por um pesadelo. Quando acordou, os lençóis estavam queimados. Lâmpadas
piscavam. Objetos tremiam. Seu poder vazava pelas frestas da realidade.
Alarmado, o exército
intensificou a caçada. A presença de Jesse começava a ser sentida no mundo
real. O tempo se esgotava.
"Não estou
conseguindo me controlar. Preciso sair daqui."
Então veio a explosão.
A porta do quarto foi
arremessada contra a parede oposta. As janelas se estilhaçaram. Alarmes
dispararam por todo o hospital. Enfermeiros correram. Quando chegaram,
encontraram apenas destroços... e Jesse, de pé no meio deles, ilesa, com os
olhos iluminados por uma energia estranha.
— Eu preciso sair daqui! Não
consigo mais me controlar!
— Jesse, você não pode sair!
— gritou uma enfermeira, em pânico.
Mas era tarde demais. Jesse
avançou. Um gesto bastou para fazer a entrada do hospital explodir. Saiu
correndo pela noite, um vendaval de medo e força.
— Jesse, volte! — gritou um
dos enfermeiros, impotente.
— O que aconteceu aqui...? — murmurou um segurança, atônito.
Pela cidade, Jesse corria —
deixando um rastro de destruição. A madrugada se dissolvia no alvorecer, e as
pessoas, sonolentas, assistiam perplexas às sirenes, à fumaça e aos estrondos
que ecoavam pelas ruas.
As autoridades foram
acionadas. A polícia cercou o perímetro. Helicópteros começaram a sobrevoar a
cidade. O caos não era mais contenível.
Na base militar, o alerta
final foi dado.
— Mobilizem o exército.
Agora.
A arma precisava ser
recuperada. A qualquer custo.
Na Cidade
— Parada! Não se mexa! —
gritou um policial, com arma em punho.
— Eu não posso me controlar!
— gritou Jesse, os olhos tremendo. — É melhor vocês saírem daqui.
Eles não ouviram. As viaturas
foram arremessadas como brinquedos. As balas ricocheteavam no ar ao redor dela,
desviadas por uma força invisível. Jesse ergueu os braços e, com um salto,
subiu trinta metros, pousando no alto de um edifício como uma ave do fim dos
tempos.
— Atirem nela! — gritou
alguém.
Mas nada a atingia.
Foi quando percebeu — ela
podia voar.
O exército chegou. Tropas
desembarcaram. Tanques avançaram pelas ruas. A cidade foi tomada.
E Jesse, ali no céu, não
era mais uma garota com medo.
Era uma força que nenhum
deles compreendia.
Enquanto
isso, na base militar, todos observavam em silêncio. Uma sala escura, iluminada
apenas pelos monitores. Jesse era monitorada como um alvo, não mais como uma
jovem. Alguns cientistas estavam aflitos. As outras crianças e jovens,
tranquilos — como se já soubessem o destino da garota. No rosto dos envolvidos
no projeto, o desespero era evidente.
—
De todos aqui... Jesse foi a que mais se desenvolveu.
— Tenho muito medo do que
possa acontecer.
— Não podemos fazer nada
agora.
— Estamos cometendo um
erro ao encurralá-la... isso só vai fazê-la perder o controle de vez.
Lá fora, o
caos se instalava. Sirenes uivavam. Pessoas corriam pelas ruas sem saber
exatamente do que fugiam. O exército avançava sobre a cidade.
O plano era
contê-la e trazê-la de volta. Mas já era tarde demais. A cada nova onda de
pânico, os poderes de Jesse aumentavam. E ela... já não conseguia contê-los.
Um pelotão de
soldados armados até os dentes recebeu a ordem mais temida: eliminar Jesse.
Eles entraram
no prédio onde a garota havia sido vista. Subiram rápido, mas hesitantes. No
andar superior, encontraram um corredor banhado por uma luz incomum, vibrante.
A aura dela preenchia o ambiente como eletricidade viva.
—
Meu Deus... o que é isso? —
sussurrou um soldado, pálido.
— Temos que detê-la!
Atirem! — ordenou o
comandante.
As balas
ricochetearam no ar como se atingissem um campo invisível. Jesse, imóvel, olhou
para eles — e o olhar bastou. Uma explosão súbita lançou os soldados pelas
janelas, corpos voando por mais de trinta metros.
Jesse, levada
pelo próprio impacto, atravessou a vidraça e caiu, planando, no topo de outro
edifício.
Caças a jato
a localizaram imediatamente. Dispararam. Atingida, Jesse despencou, cabeça para
baixo, mas antes de tocar o solo... pairou. Flutuou como se o mundo
tivesse perdido a gravidade.
Rapidamente,
foi cercada. Tropas, tanques, helicópteros. Ela estava completamente
encurralada.
O ar pesava.
O céu escurecia. Nuvens negras se formavam como se o universo respondesse ao
que estava prestes a acontecer.
Do alto, dois
A-10 rasgaram o céu, lançando bombas sobre Jesse. Uma nuvem densa de poeira
envolveu tudo. Quando ela se dissipou, Jesse ainda estava lá.
—
Nenhum efeito... —
murmurou um soldado no rádio, com os olhos arregalados.
— Não temos como
capturá-la com vida — respondeu
outro — Atirem. Agora.
E
no coração da cidade, sob um céu eletrificado, Jesse fechou os olhos.
Seu
poder, pulsando dentro dela como um vulcão prestes a romper, rompeu a última
barreira. O chão sob seus pés rachou. Um brilho insano emanava de seu corpo,
tingindo o mundo de luz pura.
Silêncio
absoluto.
E
então, com um grito primal, Jesse explodiu.
Uma
onda de energia de proporções cósmicas irrompeu de seu corpo. O clarão foi tão
intenso que o dia se transformou em sol artificial. Em segundos, a cidade foi
engolida. Prédios torceram suas estruturas antes de desintegrar. Carros voaram.
Asfalto se abriu em fendas. O céu se rasgou com uma explosão sonora que ecoaria
por gerações.
Onde
antes havia uma cidade viva, restava agora apenas um deserto de fumaça,
escombros... e um cogumelo de poeira subindo aos céus.
No
centro daquela cratera colossal, Jesse emergia.
Sozinha.
Queimada por dentro, mas intacta. Seus olhos ainda brilhavam com o resto do
poder que havia devastado tudo. Em silêncio, ela olhou ao redor.
E
então, caiu em si.
—
Eu... causei tudo isso... Não consegui me controlar... não consegui...
conter... — disse com a
voz embargada.
O
mundo em ruínas. O céu, escurecido. O solo, rachado. Nada restava senão cinzas.
E
de repente, uma coluna de luz subiu ao céu, envolvendo Jesse. Tudo ao
redor foi brevemente arrastado em direção ao epicentro. E então... ela
desapareceu.
No Vale
Jesse
despertou em um lugar completamente diferente.
Montanhas
elevadas. Céu azul puro. Riachos límpidos correndo entre as pedras. Um vale
intacto, onde a natureza ainda respirava com paz.
Ali,
sozinha, chorou.
O
peso da culpa esmagava seu coração. Mas com o tempo, a dor deu lugar à
introspecção. Em silêncio, observando a vida à sua volta — animais, flores,
vento — Jesse começou a compreender.
Meditou.
E
aprendeu.
Com
o tempo, dominou seus poderes. Conectou-se à essência da vida. Percebeu
que podia ser mais do que um experimento. Podia ser... esperança.
Algum
Tempo Depois
Jesse
emergiu do vale, renovada.
Com
os olhos serenos e o coração pacificado, agora entendia o valor da vida. Estava
pronta para usá-los — não para destruir, mas para proteger. Para ajudar. Para
evitar que outros passassem pelo mesmo horror.
Porque,
no fim, Jesse não era apenas uma arma.
Ela era a chance de redenção de um mundo que brincou de ser Deus.
E agora...
Ela havia despertado.